quarta-feira, 22 de outubro de 2014

A Sra. do Orwell - Subúrbio SP/Jdí em crônica (1)

FotoJRToffanetto 
Estação da Luz
em 27.02.2014


Há três semanas levei três horas para percorrer dez quilômetros da avenida 23 de Maio. Seguiu-se trânsito lento na Marginal Tietê. Um massacre, mas não para mim, pois aproveitei a oportunidade para meditar e até para fotografar o viés paulistano que, como flash, vez por outra avultava em meus sentidos. O rush da boca da noite não me engolfara. 

Segunda-feira optei pela conexão trem-metrô. Já no subúrbio de volta pra casa, no alto falante do vagão ouvia-se a cabine de operação anunciar o lado do desembarque. As portas se abriam e muita gente entrava e quase ninguém saia. Apoiava-me com as costas em uma destas portas automáticas. Chamava-me atenção uma senhora que lia um livro mantendo o equilíbrio do ombro a ombro com os demais e bem à minha frente. Um livro assustador para mim, pelo menos há quarenta anos:  “1984” (George Orwell). Pensava eu que aquela mulher com idade não muito acima dos trinta chegara a Orwell depois de Matrix.

Passaram-se duas ou três estações abrindo e fechado as portas opostas à qual eu me recostara e, assim, perdi atenção nos avisos sonoros. Pois fui surpreendido com a porta se abriu às minhas costas. Ao me recompor do rápido desequilíbrio, a senhora do Orwell me enganchou o braço numa tentativa de eu não cair na plataforma ou até no fosso ao lado depois do encosto do vagão, mas eu já estava seguro sobre meus pés. Agradeci-lhe pelo cuidado prestado. Sua resposta foi um sorriso aliviado de que o pior não me ocorrera.

Seguido ao incidente, ela que estava meio de lado, posicionou-se frontalmente à mim. Ganhei uma  guardiã, pensava eu quando, de repente, ela interrompe a leitura e por cima dos óculos de leitura volta os olhos para mim e examina minha sanidade. O olhar dela, saído do livro, e em contraponto àquele vagão matrixiano, denotava ver alguém da realidade comum a todos. Foi a conta para mim. 

Olhando em redor, os mais próximos me olhavam de modo parecido, de olho branco. Assustei-me novamente. Eu poderia entender que isto fosse natural, afinal, o que mais aquelas pessoas poderiam fazer dentro do vagão apinhado de gente senão correr com os olhos, mesmo porque pelas vidraças só passava o escuro da noitinha. Pois então olhei para os lados até os fundos do vagão e tive outra surpresa:

Não encontrei uma única cabecinha branca naquele mundaréu de gente. Eu era o único de cabelos brancos em proeminência. Foi assim que pude, finalmente, entender o perscrutar do olhar da minha guardiã. “Pô!!! Ela não só salvara um velhinho como também cuidava dele. Um conforto para mim, pois isto não era Matrix, afinal, pelo que lobservei, não havia um com óculos escuros.

JRToffanetto 

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