sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Victor Hugo e a Moça da Bolsa - Subúrbio Jdí/SP em crônica - 2)


Estação da Luz (Google Imagens)

Nem me dou conta, mas o vagão do trem está quase lotado. Meus olhos caem no piso sobre sapatinhos pretos de cadarço, formato masculino. Detenho-me sobre curiosas meias pretas de bolinhas brancas em vertical. Subo os olhos. Pequenas e femininas mãos cansadas se soltam sobre o colo, mas logo se cansam.

Sobre uma surrada calça preta de vinco as palmas das mãos viram-se como o desabrochar de uma flor já exaurida, como uma oração pro alto. Os joelhos juntos... era uma mulher, uma pequenina mulher. À frente do seu rosto havia uma mochila de alguém agarrado ao balaustre.

Horário de verão: 14:30 h. Trinta graus lá fora. Camiseta de vermelho desbotado e com manga até o punho, aliás, tudo o que ela vestia era de reaproveitamento de uso.”Tadinha”, sentia eu ao pensar que talvez ela nem se lembrasse da última peça de roupa que comprara para uso próprio.

Duas paradas adiante e vejo uma bolsa da última moda sobre o seu colo. Certamente ela estava acompanhada, e por sua filha, pois segurava a bolsa como se fosse a coisa mais importante da vida dela. Pensei: seria aquela senhorinha um anjo que andava no subúrbio?

O trem segue e depois de algumas estações alguém sai de frente da moça. Ela era grande, forte, com brilhos nos olhos e vendia beleza e saúde - talvez uns dezoito anos de idade. Vestia-se impecavelmente como à uma entrevista para emprego. A bolsa combinava com os demais tons em pastel que ela vestia com descrição e elegância.

Sua perna esquerda cruzava à frente da senhorinha e o braço direito circunda-a em descanso sobre o banco. Toda em sorrisos conversava com alguém sentado depois da mãe, um tipo de malandro já sambado.

Ele, de compleição física semelhante à de um jogador de bola ao certo,  segurava a mão de uma outra moça sem predicados de qualquer tipo de beleza a não ser volumosos seios e que parecia não se importar com o que acontecia ao seu lado ou da indiferença do tal malandro para com ela.

Estações adiante e já não havia ninguém impedindo minha visão da senhorinha. De cabelos secos, lavados a sabonete, carregava nas mãos e no rosto as marcas do massacre pela vida. Certamente ela teria uns vinte anos a menos dos sessenta que aparentava.

O celular toca dentro da bolsa. Abre-a e dá o aparelho para a filha que o desliga devolvendo para ser guardado na bolsa. Desta vez ela segura a bolsa com as duas mãos sobre as alças. Novamente vejo-a como em oração. Apesar das agudas e lancinantes discrepâncias, ela era, sem dúvida, a mãe da moça.  
Finalmente o subúrbio chega à última estação. Desço primeiro que eles. Quando saem do trem vejo que a namorada do malandro escafedeu-se. Do alto da escada rolante, acompanho-o descendo de mãos dadas com a moça e sua bolsa. E a senhorinha? Esperei, esperei, e não a vi passar.

Meus pensamentos se voltaram para o lado cruel da sociedade humana e, de repente, na Estação da Luz me encontro com Victor Hugo. Em “Os Miseráveis” ele cita três problemas do século XIX:  “a degradação do homem pelo proletariado, a prostituição da mulher pela fome, a atrofia da criança pela ignorância.”

Em pleno século XXI, o anjo do subúrbio era apenas uma sobrevivente da fome, ela e a filha. A moça da bolsa era o seu maior investimento, e suas orações se transmutaram para um extremo conflito interno. Enfim... quanta dor...

JRToffanetto

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