domingo, 23 de novembro de 2014

“Desenquadrando imagens suburbanas” (crônica) - JRT

FotoJRToffanetto




“Desenquadrando imagens suburbanas” (crônica) - JRT

Certas situações encontradas estão para além do presente mundo da imagem, das superfícies vazias. Pertencem à esfera do titânio, o metal presente no bico da caneta esferográfica capturando o instantâneo de cenas que se rompem sem aviso e escapam antes mesmo do ligar da câmera. Cenas sobre cenas que vão se abrindo e deixando decalques na memória recente e que depois se apagam. Entrementes, um incidente e os decalques da lixeira se avultam chamando por um conto, uma ficção, um ensaio, ou uma  crônica como esta:

Cruzando de uma plataforma para outra na baldeação de trem em Morato, vi uma mocinha se afogando num abraço dado por um tipo brutamonte. Ela sorria feliz. Seu olhar me encontrou e continuou percorrendo em redor para outros encontros, paragens masculinas. Sentia-se ela abraçando todos os homens? Talvez não. Enfim, alcancei a linha amarela e lá fiquei à espera de me enfiar numa das latas de sardinha em montagem sobre trilhos a caminho da Estação da Luz.  

E entrada do trem é uma festa. Todo mundo corre como criança avançando para os bancos. Quem fica de pé perdeu a brincadeira ou não teve a sorte da porta automática se abrir à sua frente, e quando isto ocorre, você é cuspido pra dentro da lata. Já o casal do “amasso” em público ficou junto da porta contrária (fechada) e logo foram se sentando no piso. Se não o fazem rapidamente, perderiam a chance de ficarem mais à sós diante da conserva de sardinhas e salsichas em pé. Eu mesmo me sentia como uma linguiça espremida no meio do pão.  

Com três corpos de distância a mim, via que o “brutamonte” quase nada dizia, mas ela, ao contrário, falava irradiando sorrisos, mas já não olhava em volta, pois teria que levantar os olhos para isto, e por não o fazer, desacreditou meu primeiro decalque (flash) na plataforma. Como eu não costumo pregar o olho nas pessoas, no decalque do casal, percebi que havia algo de errado com o "brutus". Errado? Outro decalque a ser passado a limpo?

Tive de olhar novamente. Talvez fazer uma cópia holográfica, pensei eu, mas não precisou. Vi braços e pernas depiladas, mas isto não eliminava o decalque da estranhes do brucutu e, aparentemente, só o ratificava. Ratificava? Bem, eu precisava de mais linha férrea para outras averiguações no meu carretel de imagens.

Não demorou muito para que o sacolejo do trem nas curvas desse sono no brutucu. Encontro-o, pois, com a cabeça no ombro da moça e enlaçada pelo braço dela com a mão lhe afagando a barba por fazer. Na próxima parada ele se desenlaça e recosta a cabeça na porta. O trem parte e ele joga a cabeça sobre o joelho dela pra mais carinho. Que... meigo!

Tá bom, vai que o cara só estava com “pobrema”, coitado. Coitado ou “tadinho”? Isto bastou para mim. Tudo o que via dizia-me o contrário: Lulu com cara de pitbull, a garota e seu bichinho de estimação, a lata de conserva, o homem virando objeto sexual, flash por decalque, rostos em papel stretch...  

Até entendo que alguns disparos fotográficos bastariam para retratar a fauna suburbana, mas sou teimoso neste aspecto. Algumas situações não devem se render à tecnologia moderna, e assim dizendo, faço uma pergunta aos que me acompanharam até aqui. Gostaram de passear de trem?

Já sei, haverá alguém que preferiria passear de lambreta, não é mesmo?!

JRToffanetto


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